Premiado em Cannes, filme brasileiro narra vida e morte de aventureiro na África
Por Daniel Feix, publicado em Zero Hora em 01 de novembro de 2017
Não é a toda hora que um filme brasileiro ganha um prêmio no Festival de Cannes. Gabriel e a montanha, que estreia nesta quinta-feira nos cinemas, levou dois dos cinco troféus distribuídos aos longas-metragens da Semana da Crítica, tradicional seção do evento francês cujo júri, neste ano, foi presidido por Kleber Mendonça Filho, o diretor de O som ao redor (2012) e Aquarius (2016). Como parte significativa da melhor produção nacional recente, Gabriel e a montanha se situa entre o registro documental e a reinvenção ficcional, porém, com duas características bem particulares: trata-se de um filme-homenagem rodado inteiramente na África.
É o segundo longa de Fellipe Barbosa (o primeiro foi o bom Casa grande, de 2014). Reconstitui a aventura de um amigo de infância do realizador, o carioca Gabriel Buchmann, que morreu percorrendo uma trilha rumo ao topo do Monte Mulanje, no Malauí. A primeira sequência mostra o momento em que dois camponeses locais encontram o corpo do jovem. O que se vê a seguir são seus rastros entre o Quênia, a Zâmbia e a Tanzânia, além do Malauí, a partir do ponto de vista de quem conviveu com ele nos últimos meses de sua vida. Gabriel definia aquela como “a viagem da sua vida”. Formado em Economia, prestes a se mudar para a Califórnia para um doutoramento em políticas públicas em países pobres, propunha-se a conhecer o dia a dia dos africanos como ele é, ou seja, com uma experiência mais intensa e menos distanciada do que a dos turistas comuns.
Atestando essa escolha de seu protagonista, Barbosa reencenou os encontros que ele teve usando, como atores, as próprias pessoas que Gabriel encontrou e com as quais conviveu – como hóspede em suas casas, como caroneiro em seus veículos etc. Ao fim de cada trecho, esses intérpretes-testemunhas deixam registrado, em frases curtas apresentadas em voice over (off), impressões sobre o que sentiram após essa convivência. A opção por esse recurso, e não por depoimentos como nos documentários mais convencionais, nos quais se vê o entrevistado falando, torna menos brusca a mudança de registro entre o que é encenado e o que é apenas narrado, amenizando um eventual estranhamento do espectador. E, em consequência disso, potencializando o que os teóricos costumam chamar de sensação de realidade. Apenas o próprio Gabriel (interpretado por João Pedro Zappa) e sua namorada Cris (Caroline Abras), que o visita dias antes de ele morrer, são vividos por atores “que não estavam lá”. A unidade das performances, incluindo as do casal, é garantida pela direção de cena sensível, em consonância com a abordagem delicada que o tema sugere.
Gabriel e a montanha é quase uma versão tropical de Na natureza selvagem (de Sean Penn, 2007), embora não tenha uma adesão tão evidente ao discurso de seu protagonista. E, ainda, trabalhe sua jornada de maneira menos espetacular – com, contrário disso, um realismo calcado em planos estendidos, bastante profundidade de campo e uma fotografia de caráter naturalista, bonita especialmente na primeira e nas últimas sequências, quando, poeticamente, registra Gabriel sendo “engolido” pela natureza pela qual ele demonstra admiração. A registrar: o fotógrafo, Pedro Sotero, é o mesmo de, entre outros, Aquarius, Casa grande e O som ao redor.
Em termos de mercado, Gabriel e a montanha é um filme do tamanho dos de Kleber Mendonça Filho – já foi visto por mais de 70 mil pessoas apenas na França, onde estreou em agosto, graças ao prêmio de distribuição obtido em Cannes. Esteticamente, é como a própria temática da relação entre o homem e o meio ambiente no contexto do cinema brasileiro: raramente abordada, porém urgente pelo debate que suscita.