Road movies pela mesclada América Latina
Por Caroline Zatt da Silva, integrante do Júri da crítica Accirs/Abraccine do 48º Festival de Cinema de Gramado
Único documentário da Mostra Competitiva de Longas Gaúchos, venceu o Kikito de Melhor Filme Portuñol, dirigido, também, pela única mulher entre os realizadores das obras concorrentes. Influenciada pela Antropologia, Thais Fernandes, como diretora, é focada em narrativas documentais e se concentra na mágica relação de ouvir o outro. No seu trajeto de viagem pelas fronteiras do Brasil com países vizinhos, filme joga luz sobre a latinidade que une personagens diversos nesses territórios.
A cineasta Thais Fernandes havia ganhado a Mostra Gaúcha de Curtas do Festival de Cinema de Gramado em 2018, com o documentário Um corpo feminino, saindo da serra com o troféu e muitos elogios. O filme seguiu o circuito de festivais, e ganhou visibilidade em eventos para discutir a questão de gênero. Agora, com seu primeiro longa, Portuñol, também documental, ela concorreu na 48ª edição do evento, com mais quatro títulos, ao Kikito de melhor título em longa-metragem produzido no Rio Grande do Sul. E venceu, novamente.
A premiação do 48º Festival de Cinema de Gramado, de modo geral, consagrou narrativas que abordaram andanças pelos territórios latino-americanos, que colocaram em evidência legados dos povos originários, que reproduziram línguas indígenas e dialetos. Em 2020, a seleção – tanto dos filmes estrangeiros como brasileiros, incluindo os curtas, nacionais e gaúchos – trouxe muitas tramas em trânsito, refletindo formações identitárias regionais.
Rodado nas fronteiras do continente, Portuñol tem muito disso. O longa é um road movie que viaja pelas fronteiras do Sul do Brasil com seus países vizinhos latinos, investigando noções de “fronteira” e como se dão as trocas culturais dos habitantes desses territórios através da linguagem. Com obra influenciada pela antropologia, a cineasta viaja com sua pequena equipe, de van, pelas zonas de limite com Uruguai, Argentina, Paraguai e Bolívia.
Os dispositivos de narrativa de Um corpo feminino e Portuñol são semelhantes. Com as participantes do curta, o questionamento era sobre as características do feminino, identificação. No novo filme, o eixo central de Thais é a concepção de fronteira para os moradores dessas regiões limítrofes. Dessa forma, com o norte das entrevistas para o significado subjetivo de cada um, possíveis conflitos ou afinidades dos idiomas viriam a reboque do questionamento, como consequência prática.
Outra comparação natural com o curta premiado da diretora é a busca do Outro, em uma perspectiva antropológica. A realizadora reconhece a inspiração nesse campo do conhecimento, e diz ter vontade de estudar mais no futuro, tendo já relações com os integrantes do Núcleo de Antropologia Visual da Ufrgs. Em uma relação com a etnografia, na parte final do filme, na cidade uruguaia de Rivera (espelho de uma avenida para a gaúcha Santana do Livramento), uma das entrevistadas declara: “O outro é diferente de ti”. E um dos meninos, também do município uruguaio, vem com a palavra “entreverado” sobre o tema proposto, aludindo a misturas, fusão, hibridismo.
A síntese da obra fílmica parece estar nesse ponto, refletida nas mesclas culturais, como na junção de ingredientes na gastronomia (ou nas diferentes apresentações da mesma erva-mate herdada de uma raiz guarani), dos ritmos musicais e demais manifestações artísticas (rap, literatura ou performances de rua), tão contempladas no decorrer de todo o longa. Como é comum no gênero documental, quando a essência dos filmes surge na ilha de edição, a impressão que fica ao espectador é que também foi na montagem (assinada por Jonatas Rubert) que se desenhou o fio narrativo de Portuñol, a partir da costura dos depoimentos e das paisagens (sonoras ou visuais).
O “entrevero” não é somente nas línguas – espanhol (castelhano), português, guarani e dialetos. Os monumentos, costumes, personagens e histórias exemplificam as representações identitárias não excludentes, mas, sim, em uma confluência que só tende a crescer. O fato de a linha “divisória” ser efetivamente imaginária e de que os que frequentemente a atravessam não quererem vê-la é significativo. Assim como outra mensagem clara do documentário: os preconceitos vêm do desconhecimento. Talvez, por isso, Thais queira conhecer tanto, observar muito, perguntar e ouvir. No filme, a cosmologia indígena se mistura com a vivência acadêmica – a descendente dos povos originários é que explica que a ideia de fronteira é uma coisa trazida pelos brancos, eles não conheciam limites. A paisagem da cidade se mistura com a da floresta.
Músicos uruguaios, rappers indígenas, estudantes venezuelanas, poetas do portunhol selvagem (como Douglas Diegues, Mano Zeu) e professores universitários (Diana Pereira, Rosario Brochado) compõem, todos, um mesmo povo, filhos da mesma Pachamama, habitantes de um continente gigante e unidos por um idioma que traz junto da fala uma cultura única e ao mesmo tempo diversa. Com certo humor e muita musicalidade, Portuñol é uma produção importante num momento de polarização política.
A diretora avalia que quando já se sabe o retrato que se quer pintar de alguém ou de alguma situação se perde a mágica da relação de ouvir o outro. Ela se utilizou desse método de trabalho para filmar coisas invisíveis, tanto a fronteira, quanto a língua, que é um fenômeno que acontece ao vivo, difícil de ser materializado.
Portuñol surgiu do argumento original de Jessica Luz, produtora do longa, que convidou Thais para dirigir. Além da direção, ela assina também pesquisa e roteiro. A arte do projeto é do sempre elogiado Leo Lage. A direção de fotografia é de Pedro Clezar; a montagem, de Jonatas Rubert. A interessante trilha sonora tem assinatura dos excelentes músicos Bruno Mad e Lucas Kinoshita. A obra é uma produção da Vulcana Cinema, com coprodução da Epifania Filmes, Globo News e Globo Filmes e distribuição da Lança Filmes.
Diálogos possíveis
É interessante observar que Portuñol foi exibido – virtualmente e concomitantemente ao Festival de Gramado – no 1º Festival As Amazonas do Cinema (uma mostra competitiva que premia obras audiovisuais dirigidas por mulheres dentro da programação oficial do 6º Festival Amazônia DOC), encerrado em 23 de setembro. Naquele evento, o título recebeu prêmio especial do júri oficial e foi eleito o melhor filme pelo júri popular.
Em um bate-papo na TVE-RS, Thais Fernandes admitiu haver interesse de que o road movie tivesse sua estrada muito mais ampla, subindo para além da Bolívia, e contemplando mais vizinhos hispanohablantes, provavelmente chegando à região amazônica, mas que o orçamento não permitiria ousado destino. Friso o adjetivo interessante sobre as coincidências, uma vez que o curta brasileiro grande vencedor na edição de Gramado de 2020 tenha sido o amazonense O barco e o rio, de Bernardo Ale Abinader, que levou cinco prêmios, incluindo Melhor Filme e Júri Popular. O diretor destacou que há 20 anos um filme do Amazonas não participava da mostra na serra gaúcha.
Em um projeto que Abinader já declarou ter ambição de transformar em longa, ele mostra o embate existencial de duas irmãs que moram no porto de Manaus, em um barco. Uma delas não se conforma em ter um horizonte tão enorme ao seu redor, e ter que viver de pequenas viagens no entorno. Ela quer o mundo, ela quer ver mais, escutar mais, observar, conhecer. Assim como Thais fez a bordo de uma van.
Foram muitos os trajetos e missões mostrados pelos filmes selecionados para esta 48ª edição do Festival de Gramado. Alguns como olhos no futuro, outros tentando entender e confrontar o passado, retornar às origens, abraçar o que passou e o que virá.
King Kong en Asunción, de Camilo Cavalcante, liga o sertão pernambucano com o deserto de sal na Bolívia e a capital paraguaia. Um animal amarelo, de Felipe Bragança, sai do interior brasileiro, vai para a cosmopolita Rio de Janeiro, migra para minas no Moçambique, viaja para Portugal. É em Lisboa que a artista retratada no documentário O Samba é primo do jazz é apresentada ao espectador. A bordo de um tuk-tuk, ela reconhece nas fachadas de casarios além-mar o mesmo azulejo tão presente em sua São Luís do Maranhão.
Azulejos, que aliás, em uma montagem, formam o cartaz de divulgação do filme Portuñol, criação do artista Leo Lage. Tão associados a Portugal, cuja colonização é tão determinante no nordeste brasileiro, foram a imagem escolhida para a arte de um longa que percorre o centro-sul do continente sul-americano, com forte colonização – ou exploração – espanhola.
Lembro que a palavra azulejo deriva do árabe (az-zullaiju, que significa pedra lisa ou polida), e que a cultura árabe permaneceu com legado mais forte na Espanha, apesar daqueles povos terem ocupado toda a Península Ibérica. O uso dos azulejos para revestimento de paredes e mesmo das abóbadas das igrejas remonta à cultura muçulmana. E os registros históricos comprovam que foi através da cidade espanhola de Sevilha que os azulejos chegaram a Portugal, por volta de 1500.
E, tentando, mais uma vez, mapear nossas origens e pontos em comum, trazendo a etimologia, vamos ao equívoco do vocábulo latino que designou os povos originários desse continente como “indígenas” ou “índios”, acreditando, os grandes ‘descobridores’, terem chegado às Índias. Nossa latinidade nasce de um engano, das mesclas dos sobreviventes, em uma série de adaptações, na torcida para que poucos percebam na pele ou no cabelo que alguém é mestiço (como em Todos os mortos). No fim e ao cabo, o menino de Rivera tinha razão: está tudo ‘entreverado’. E os limites e “fronteiras” são ruínas, manchadas por este passado arcaico da tentativa de separação, de guerras e tratados.
Com o protagonismo do idioma guarani nas narrativas, o Festival de Cinema de Gramado nunca teve tanta intersecção temática, nunca discutiu tanto o tema das heranças malditas, das dores comuns das explorações e das ditaduras, dos conflitos, dos preconceitos, da migração e da sobrevivência. E aquele “portunhol” discriminado na tentativa de comunicação entre os profissionais do Brasil e dos demais países como se fosse um dialeto pobre ou uma linguagem errada, improvisada, foi, enfim, compreendido como uma manifestação cultural, algo que surge do encontro de quem quer se conhecer e se compreender.