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Publicado por em mar 23, 2014 em Artigos |

Tempo demais na floresta

fitabrancaaA Fita Branca procura, numa remota aldeia alemã do início do século 20, uma explicação para as possíveis origens dosentimento totalitarista

Por: Flávio Guirland *

Michael Haneke iniciou sua carreira na TV austríaca há mais de 30 anos, e hoje trabalha em vários países da Europa. Nesse meio tempo, consagrou-se através de uma obra prolífica  são mais de 20 filmes como diretor, e outros tantos como roteirista. O motivo que o leva a filmar é quase sempre o mesmo: lançar um olhar crítico e nada lisonjeiro sobre a sociedade, moldada invariavelmente pelo desejo humano de poder, e o subsequente uso desse poder na submissão e humilhação alheias. Não, não poderíamos dizer que Haneke seja um otimista. É de sua autoria Violência Gratuita (Funny Games, 19971), cujo enredo trata de dois jovens psicopatas em uniformes de jogadores de tênis que tomam como refém, torturam e assassinam uma família burguesa em férias  uma análise do exercício da violência como forma de entretenimento. É seu também A Professora de Piano (La Pianiste, 2001), sobre uma rígida professora de música com propensões ao sadomasoquismo e à automutilação. Assim como Le Temps du Loup (2003), fábula pós-apocalíptica que descreve um mundo quase desprovido de bondade humana, e Caché (2005), sobre um casal de classe alta parisiense que se vê envolvido num ambiente de desconfiança e paranóia quando começa a receber fitas de vídeo enviadas por um observador oculto.

Uma tragédia anunciada

Com A Fita Branca (Das Weie Band), vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2009, Haneke volta a filmar em seu país de origem, e produz mais um título exemplar de seu estilo. Como Le Temps du Loup, A Fita Branca possui algo de fábula, com sua nostálgica (e ao mesmo tempo sinistra) fotografia em preto e branco, e a narração em voz over que nos relata os fatos ocorridos, em flashback. Pois a história se passa no remoto vilarejo de Eichwald, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Essa pequena comunidade no norte da Alemanha é marcada por um estrito senso de ordem e tradição, o que a mantém imutável por gerações a fio. O Barão (Ulrich Tukur) é quem ocupa o topo da estrutura social. Ele é o senhor proprietário das terras, e provê aos habitantes do lugar, na sua maior parte agricultores, a necessária fonte de trabalho e sustento. O professor, o médico, o pastor (não ficamos sabendo seus nomes), os empregados, e até mesmo as crianças, todos ali desempenham uma função específica e determinada. Enfim, é uma sociedade autoritária, patriarcal (e ainda semi-feudal), como muitas naquela época.

Este cenário de aparente estabilidade é sacudido por uma série de incidentes: o médico (Rainer Bock) sofre uma violenta queda ao tropeçar com seu cavalo num arame esticado entre duas árvores. A esposa de um agricultor fere-se mortalmente numa máquina de serraria. Um celeiro pega fogo. O filho do Barão (um menino de cachos dourados, cuja aparência chic contrasta bastante com o tipo rude dos demais garotos da região) é sequestrado. Os aldeões mobilizam-se na sua busca, e ele é finalmente encontrado num galpão, amarrado pelos pés, de ponta-cabeça, severamente açoitado com um chicote. Uma outra criança, com Síndrome de Down, desaparece de modo similar, e é encontrada na floresta com os olhos feridos, o que quase a deixa cega.

Aos poucos percebemos que os fatos ocorridos não são gratuitos. Pelo contrário, revelam uma teia de relações, as mais perversas, revestidas de toda a sorte de abusos e atos retaliatórios. Após retornar do hospital, onde recuperava-se de sua queda, assistimos a uma cena brutal em sua frieza, em que o médico, cansado da amante (Susanne Lothar), dispensa-a com requintes de abjeção. Não satisfeito, submete Anna, a filha pré-adolescente, a uma relação incestuosa. (A passagem noturna onde o pequeno irmão de Anna, Rudolf, aparece perambulando pela casa, insone, e flagra o pai e a irmã desvencilhando-se cuidadosamente para não chamar a atenção, com Anna em lágrimas, ocupa desde já lugar garantido em qualquer antologia de cenas de terror psicológico). Tais fatos nos levam a crer que a armadilha preparada para o doutor não tenha sido, afinal, despropositada.

No centro de tudo está a figura do pastor (uma extraordinária interpretação de Burghart Klaussner), também um “expert” no emprego de técnicas de humilhação. Ele é um pai severo, e administra sua família com mão de ferro, não hesitando em usar o rebenque diante da menor provocação. Não bastando o doloroso castigo físico, dois de seus filhos, Martin e Klara, são obrigados a usar a tal da “fita branca”, como símbolo ostensivo de perda da pureza (leia-se: perda da dignidade). As crianças são obrigadas a utilizar a fita atada no braço, em público, até que o pai julgue que elas estejam “purificadas” novamente.

Desta forma, Haneke estabelece uma rede de motivos, um ciclo vicioso de perversidades que contamina toda a comunidade e, mais que isso, sugere os caminhos tortuosos pelos quais as vítimas de algum tipo de abuso deslocam a sua vingança para alvos mais fáceis de atacar que seus legítimos algozes. Eichwald é um lugar onde os ressentimentos permanecem reprimidos, e revelam-se apenas indiretamente através de sintomas sociopatas. Há um episódio explícito, entretanto, que revela o clima de tensão presente no vilarejo: o filho primogênito da família de agricultores, ao culpar o Barão pela morte da mãe  ela acidentou-se num galpão da fazenda, durante o trabalho  destrói parte de uma plantação de repolhos, orgulho do patriarca. A violência com que o rapaz destroça as hortaliças com a foice mais parece uma decapitação sumária.

Mas ainda resta a pergunta: quem poderia ter sido o autor dos atos infames?

Partindo da confissão de uma aluna (que num evidente sinal de arrependimento, revela ter previsto um dos crimes em sonho), o professor da escola (Christian Friedel) começa a suspeitar de um grupo de crianças. Elas são unidas por uma cumplicidade fora do comum, e logo fica claro que ao menos os filhos do pastor, do capataz da fazenda e do agricultor são cúmplices em parte dos incidentes ocorridos. Percebemos que aquelas crianças são enfim capazes de reagir à opressão. E a crueldade excessiva de suas ações retaliatórias não é tanto resultado de sua iniciativa, quanto de sua herança. Ódio e violência são reações cotidianas de muitos de seus pais.

À medida em que o medo espalha-se pela comunidade, o Barão recebe a notícia do assassinato do Arquiduque Franz Ferdinand. O conflito de 1914 chega quase como um alívio: uma forma de dar vazão a todos os ressentimentos, algo como quebrar o vidro da janela em um ambiente sufocante e empestado.

O mal, pela raiz

Haneke evita soluções simples. Ao contrário, opta por construir uma intriga calcada numa motivação múltipla e numa culpa coletiva. A Fita Branca inicia-se com a narração do professor, agora um homem idoso (voz do ator Ernst Jacobi). Ele procura identificar, na rememoração daqueles estranhos acontecimentos, as causas do que viria a ocorrer em seu país nos anos seguintes. Há aí uma clara referência à ascensão do regime fascista na Alemanha, e é perfeitamente possível crer que aquelas crianças, formadas num ambiente de próspera crueldade, poderiam vir a tornar-se os futuros seguidores de Hitler (a fita branca poderia ser entendida como um ancestral da braçadeira vermelha com a suástica?). No entanto, seria um erro limitar a interpretação do filme como sendo um mero estudo sobre as possíveis origens psicológicas do nazismo. O seu alcance é sem dúvida mais abrangente (e contemporâneo). O próprio diretor afirmou, numa entrevista concedida por ocasião do New York Film Festival, em outubro de 2009, que procurava investigar as condições em que as pessoas podem tornar-se vítimas de qualquer tipo de ideologia. “O ponto de partida era mostrar um grupo de crianças que assimila os ideais de seus educadores e pais, eleva esses ideais a níveis absolutos, e então julga seus pais de acordo com eles”.

Ao assistirmos ao filme, podemos constatar sem maiores dificuldades que as ações daquelas pessoas (e não só das crianças) são resultado de uma cultura religiosa rígida e punitiva, onde grassam a repressão sexual e os abusos de poder. Um cenário típico da moral protestante da época.

No entanto, Haneke completa: “Eu entendo o assunto como sendo atemporal”. (…) “Ocorre sempre o mesmo quando as pessoas de qualquer lugar e em qualquer época estão em situação de desespero, de opressão, de humilhação ou de sofrimento. Quando elas não vêem saída, elas são vítimas fáceis, e ouvirão ansiosas a qualquer um que lhes disser: ‘eu sei como vocês podem salvar-se’; ‘eu sei como vocês podem sair dessa situação’; ‘eu sei como vocês podem vingar-se’. No fundo é um problema de educação (…)”.

Passado e presente

A Fita Branca, de certa forma, aprofunda um tema já abordado por Haneke em Caché. Naquele filme, o sentimento de culpa de toda uma nação é projetado na figura do intelectual parisiense interpretado por Daniel Auteuil. A narrativa se passa no tempo presente, mas tem como objetivo provocar uma reflexão sobre as atrocidades cometidas pela França em seu passado colonialista. Em A Fita Branca ocorre algo semelhante. Haneke, contudo, faz agora o caminho inverso: visita um período mais remoto da história da Alemanha, em busca de uma possível explicação para os fatos que viriam a acontecer num futuro próximo.

Comparando os dois filmes em termos de narratividade, poderíamos ainda acrescentar que ambos valorizam de sobremaneira a elisão, o não dito, o não revelado, tudo aquilo que permanece oculto entre uma cena e outra. A Fita Branca, no entanto, é nesse aspecto bem mais sutil que Caché, ao oferecer consideravelmente mais espaço para especulações a respeito do comportamento dos personagens e de suas relações interpessoais. É sem dúvida um filme menos agressivo e mais maduro, onde a soberba interpretação dos atores fornece o necessário tom de autenticidade a uma reconstituição de época que em seu todo é impressionante. (É notável a perspicácia na direção dos atores mirins, cujas expressões irradiam um misto de inocência e malícia).

E mesmo tratando-se de um filme de época, há algo de essencialmente moderno na perspectiva adotada por Haneke: ele examina momentos da intimidade doméstica dos personagens (o pastor repreendendo o filho Martin por cometer o pecado da masturbação, Rudolph questionando a irmã Anna sobre o mistério da morte), com o objetivo de sugerir ligações entre a psicologia da vida privada e o comportamento social. É o olhar investigativo (e contemporâneo) do diretor que procura estabelecer um vínculo entre a repressão recebida em casa e a corrupção exercida no âmbito da comunidade.

Para a simultânea evocação do moderno e do arcaico  que lembra, de certo modo, O Diário de uma Camareira (Le Journal d’une Femme de Chambre, 1964), de Luis Buñuel, e O Garoto Selvagem (L’enfant Sauvage, 1970), de François Truffaut  contribui, e muito, a fotografia de Christian Berger, registrada num tom intermediário entre o preto e branco e o prateado . De uma vibração visual intensa, ela não só remete ao período em que se passa a história, mas também ajuda a criar uma atmosfera de desconfiança e tensão. Um típico distanciamento brechtiano que coloca o espectador numa posição privilegiada para ir além da simples empatia com os personagens, e exercer uma análise mais acurada da trama.

Mais luz!

Por pior que sejam os agouros de A Fita Branca, o filme não é inteiramente desprovido de esperança. A timidez do professor e a sua relação com a ama-seca (Leonie Benesch) fornecem, sem dúvida, um contraponto ao clima sombrio que domina a narrativa, acrescentando uma tonalidade de delicadeza e bom humor. Outra fresta luminosa pode ser vislumbrada na figura do pequeno Gustav, filho do pastor, quando ele pede permissão ao pai para cuidar de um pássaro machucado, e depois, solidário, oferece-o em substituição àquele que havia morrido. São personagens que de alguma forma escapam do redemoinho venenoso que a tudo e a todos absorve. E é através deles que Haneke procura firmar sua tese: não estamos condenados a viver sob o despotismo. Se estas pessoas conseguem sobreviver, sem serem corrompidas, ainda há algo em que se acreditar.

* Realizador, Mestre em Multimeios pela UNICAMP,

docente no Curso de Produção Audiovisual da ULBRA

Refilmado pelo próprio Haneke nos EUA em 2007.