Páginas
Seções

Publicado por em mar 25, 2014 em Artigos |

Testemunhas do suicídio (A Ponte, 2006)

por Ticiano Osório

05Antes que você comece a ler este texto sobre o documentário A Ponte (The Bridge, EUA, 2006), inédito nos cinemas gaúchos e lançado diretamente em DVD, aviso: vou citar passagens que podem estragar o prazer cinematográfico de quem ainda não assistiu. Se é que pode haver “prazer” em um filme sobre suicídio – e eis um dos tantos pontos polêmicos da estréia como diretor de Eric Steel, co-produtor de outros dois longas de temática mórbida, As Cinzas de Ângela (de Alan Parker) e Vivendo no Limite (de Martin Scorsese), ambos de 1999.

Mas, enfim, o que se propõe aqui é menos um comentário e mais uma conversa sobre o filme. A ponte do título é a famosa Golden Gate, em São Francisco (EUA). Já entrando no terreno das interpretações, também poderia ser a ponte para outra vida. Um dos entrevistados por Steel arrisca uma explicação sobre o fascínio que a ponte exerce sobre os suicidas: “Ela contém uma falsa promessa romântica”. Outro diz entender porque o amigo escolheu saltar de uma altura de 69 metros rumo às aguas do Pacífico: “É mais simples, é um passo sem volta” (em oposição, complementa uma terceira pessoa, a formas mais complexas ou sem a garantia de sucesso, como dar um tiro na cabeça ou tomar uma overdose de pílula – “Acordar em um hospital seria horrível”). E há quem lembre que, afinal, muitos suicidas estão na verdade tentando ser salvos – qual lugar melhor do que o cartão-postal de uma cidade?

Os depoimentos colhidos por Steel – incluindo os de sobreviventes de tentativas de suicídio – esclarecem por que essas pessoas desistiram da vida (“Para nós”, diz a amiga de uma das vítimas, “o sol nasce, e amanhã é outro dia”, mas para outros o sofrimento é aniquilante). Por outro lado, o filme carece de mais dados sobre seu cenário. Eu gostaria de saber, por exemplo, quando foi o primeiro suicídio da Golden Gate registrado, e qual o impacto desses casos sobre a população de São Francisco. O meu colega de Zero Hora Marcelo Perrone, por sua vez, ficou espantado pelo fato de que, apesar de ser a coisa mais comum do mundo na cidade californiana (“Acontece toda hora”, afirma um policial), as autoridades nunca tomaram alguma iniciativa, do tipo colocar grades de proteção. A Bia, minha mulher, logo perguntou: o cara ficou lá filmando suicídios e não fez nada para evitar?

Pois é, talvez seja esta a questão mais controversa de A Ponte: até que ponto um diretor pode ficar à espreita da morte? Ao decidir rodar um documentário sobre esse tema, certamente Steel se deparou com esse dilema ético. Em entrevistas, o diretor assegurou que ele e sua equipe se comportaram primeiro como “seres humanos misericordiosos”, e só depois como cineastas – sempre teria acionado a polícia para avisar de suspeitas de suicídio.

Nada disso, contudo, transparece no documentário. Pelo contrário: senti um certo pendor ao voyeurismo sádico na maneira como Steel estrutura seu filme, exibindo, em imagens recorrentes, a figura do cabeludo Gene Sprague, todo vestido de preto, de óculos escuros, vagando de lá para cá sobre a ponte, tentando se decidir. Ao empregar uma tática dos filmes de suspense (sublinhada por uma trilha sonora realmente desnecessária em um documentário sobre algo tão grave), o diretor acaba escorregando para o sensacionalismo – noção reforçada pelo uso, na cena final, de uma segunda câmera para mostrar a queda de Gene: ou seja, Steel sabia que ele era um suicida e se preparou para filmar sua morte.

Texto publicado originalmente no Primeira Fila, o blog de cinema do jornal Zero Hora. Texto de crítico integrante da ACCIRS já publicado em outro veículo da imprensa e autorizado para publicação no site da associação.

A Ponte (The Bridge)
Documentário
Direção: Eric Steel
País de produção: EUA
Ano de lançamento: 2006
Disponível em DVD no Brasil
Duração: 93 minutos