[TIFF 2024] Crítica de “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles – Por Matheus Pannebecker
O editor do jornal pediu, mas Eunice Paiva, a protagonista de Ainda Estou Aqui, não cedeu. A foto que ela está prestes a tirar com a família para publicação será, sim, com todos sorrindo, sem sinais de tristeza. Trata-se de um momento emblemático no filme de Walter Salles, pois sintetiza não apenas a essência de uma grande mulher, mas também a de um filme muito parecido com ela, que viu o marido ser levado para interrogatório durante a ditadura militar brasileira e, sem nunca mais encontrá-lo, precisa reinventar a família e a si própria.
A personagem existiu de verdade – Eunice é mãe do escritor Marcelo Rubens Paiva, autor do livro que dá origem ao longa, e do célebre Feliz Ano Velho – e a sua história de vida ainda estava por ser descoberta. Dona de casa da burguesia carioca, ela se transforma completamente após perder o marido duas vezes: primeiro, com sua ausência dentro de casa, quando ele é levado pelos milicos da ditadura; depois, com a sua morte, oficialmente reconhecida apenas muitos anos depois pelo Estado brasileiro.
Walter Salles, que realiza seu primeiro longa após mais de uma década, já parte com uma vantagem ao contar a história de Eunice, abordando-a de maneira cuidadosa e sensível. A partir do roteiro escrito por Heitor Lorega e Murilo Hauser, ele evita ao máximo a exploração de emoções em momentos-chave da trama. O choro que Eunice esconde e a sua constante determinação em preservar os filhos, custe o que custar, funcionam muito mais do que a mera exposição, colocando o espectador na mesma posição ao testemunhar os fatos – o que, dramaticamente, cria um efeito cumulativo e melancólico.
Ainda Estou Aqui revela Eunice como uma mulher à frente de seu tempo. Além de segurar sozinha a barra de criar a família após o desaparecimento do marido, ela decide cursar Direito para, dessa forma, exigir pessoalmente das autoridades brasileiras o reconhecimento da morte não decretada do esposo – um arquiteto e ex-deputado que, apesar da ausência física, ficou vivo na memória de Eunice até os seus últimos dias de vida, em dezembro de 2018, quando faleceu após quase 15 anos convivendo com o mal de Alzheimer.
Concentrando o capítulo específico da história de um país na trajetória de uma única mulher, Ainda Estou Aqui se esquiva dos didatismos de uma temática já deveras explorada pelo cinema brasileiro. Não por acaso, ao apostar nessa perspectiva “individualizada”, o filme se torna universal, identificável e ainda mais próximo ao espectador. A narrativa segue um estilo bastante clássico, com as devidas contextualizações, mas o coração de Ainda Estou Aqui está no cotidiano e no silêncio de incontáveis pessoais que foram torturadas pela ditadura de outra forma: condenadas ao convívio diário com ausências, lacunas e perguntas nunca respondidas.
Fernanda Torres, no papel de Eunice Paiva, é um espetáculo de sutileza, força e sobriedade. E aqui reservo um tempo para falar especificamente sobre ela, porque Ainda Estou Aqui é o retorno que ela merecia – após tantos anos sem participar de um longa de ficção (os dois últimos foram em 2009: A Mulher Invisível e Os Normais 2). Seu novo trabalho, proporcional em economia e emoção, nos remete a outros grandes momentos de sua carreira no cinema, principalmente entre os anos 1980 e 1990, quando brilhou em filmes como A Marvada Carne, Terra Estrangeira, Eu Sei Que Vou Te Amar e Com Licença, Eu Vou à Luta.
E, se comentei sobre o quanto Ainda Estou Aqui suprime emoções para, de certo modo, reproduzir o próprio estado interno da protagonista, a situação muda inevitavelmente no terço final da trama, quando Eunice recebe a oficialização pela qual tanto lutou (“é esquisito, sentir alívio com um atestado de óbito”, diz ela). Já enfrentando o mal de Azheimer, agora interpretada pela incomparável Fernanda Montenegro, em aparição poderosa, Eunice vê como o tempo atuou sobre a sua família e percebe que, por mais que o passado esteja resolvido, ele sempre estará presente.
O fato de Ainda Estou Aqui chegar aos cinemas em 2024 também carrega um gosto melancólico, pois é um importante lembrete dos horrores que vivemos nesse período sombrio da história brasileira. Em um país que, nos últimos anos, pareceu esquecer e até glorificar a ditadura, em uma perigosa manobra política de massa, o filme é mais do que um poderoso antídoto. Assim como em Central do Brasil, Walter Salles lança um olhar atemporal sobre o que constitui o Brasil. Que ele não demore tanto para nos brindar novamente com obras de tamanha potência.
Crítica escrita originalmente pelo membro da ACCIRS Matheus Pannebecker diretamente do Festival Internacional de Cinema de Toronto, no Canadá.