Tinta Bruta conquista a plateia do Festival de Berlim
Por Marcus Mello, texto originalmente publicado no jornal Zero Hora em 20 de fevereiro de 2018, logo após a primeira exibição do filme – em 18 de fevereiro – no Festival de Cinema de Berlim, onde acabaria conquistando dois prêmios.
Domingo (18) à noite, 22h30min. A gigantesca sala 7 do CinemaxX, na Potsdamer Platz, estava literalmente entupida de gente para a ver a estreia mundial de Tinta Bruta, segundo longa dos realizadores porto-alegrenses Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, na 68ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim. Os ingressos esgotados dias antes do início do festival confirmavam o interesse do público alemão pelo trabalho da dupla, que já teve dois de seus trabalhos anteriores, o longa Beira-Mar (2015) e a série O Ninho (2016), distribuídos comercialmente na Alemanha, depois de terem também passado pela Berlinale.
Ao final das quase duas horas de projeção (o filme tem 118 minutos de duração), quando começaram a correr os créditos, ainda embalados pela voz hipnotizante de Anohni – a nova identidade do cantor e compositor Antony Hegarty, ex-Antony and the Johnsons –, que ajuda a potencializar o impacto da última sequência, estouraram os aplausos. Matzembacher e Reolon, junto com seus jovens protagonistas Shico Menegat e Bruno Fernandes, tinham conquistado a adesão de sua primeira audiência. O que logo se confirmaria quando subiram ao palco para receber inúmeros comentários elogiosos ao longo da tradicional “Q&A” (sessão de perguntas e respostas da equipe com o público), da qual também participaram a produtora Jessica Luz, o montador Germano de Oliveira e a diretora de arte Manuela Falcão.
Tinta Bruta conta a história de Pedro (Shico Menegat), um jovem solitário e introvertido que, após reagir de maneira extrema ao bullying sistemático de seus colegas de universidade, precisa enfrentar um processo criminal difícil, enquanto sobrevive fazendo performances eróticas na Internet, com o corpo coberto de tinta fosforescente, escondido pelo codinome de Garoto Neon. Ambientado em uma Porto Alegre noturna e hostil, brilhantemente fotografada por Glauco Firpo, o filme revela um notável amadurecimento dos diretores em relação ao seu longa de estreia, Beira-Mar, que embora tivesse muitas qualidades, ainda era um projeto menor, com orçamento pequeno e bem menos ambicioso em termos formais e dramáticos.
Dividido em três atos, que gradativamente vão apresentando os conflitos de seu atormentado protagonista em seus constantes deslocamentos entre o mundo real e o virtual, Tinta Bruta revela-se uma experiência estética ainda mais intensa para os espectadores porto-alegrenses. Matzembacher e Reolon agregam ao drama íntimo de Pedro um forte componente político, retratando de maneira contundente o atual abandono da capital gaúcha por parte de seus gestores públicos – “essa cidade parece um purgatório”, afirma um dos personagens, ao se referir aos seus habitantes cada vez mais acossados pela violência urbana, pela falta de perspectivas e pelo desejo de partir em busca de melhores oportunidades.
Parte fundamental para o belo resultado alcançado deve ser creditada ao seu extraordinário protagonista, o estreante Shico Menegat, que permanece praticamente o tempo inteiro na tela e consegue, através de uma atuação marcada por silêncios, gestos mínimos e olhares expressivos, criar um personagem de enorme complexidade, cuja figura lembra em vários momentos os adolescentes dos filmes do americano Gus Van Sant, uma referência assumida pela dupla de diretores porto-alegrenses. Ao lado do também estreante Bruno Fernandes (que antes só havia atuado no teatro), com quem protagoniza sequências de alta voltagem erótica, Menegat aqueceu a noite gelada do inverno berlinense com a luz intensa de seu olhar e os sinuosos movimentos de seu corpo coberto por tinta fosforescente.