Trama Fantasma
Por Rodrigo de Oliveira, publicado na revista eletrônica Almanaque21: Oscar 2018, em fevereiro de 2018.
Vencedor de três Oscar, Daniel Day-Lewis anunciou aposentadoria da carreira artística depois desta sua segunda colaboração com Paul Thomas Anderson, o climático Trama Fantasma. Não se sabe se isso realmente se confirmará, visto que o ator já anunciou anteriormente que pararia de trabalhar e retornou, mas tudo indica que vimos o último filme estrelado por Day-Lewis. Como poderíamos imaginar vindo do diretor de Sangue Negro – a outra colaboração entre os dois artistas, que rendeu ao ator seu segundo Oscar e a primeira indicação ao cineasta – o filme é sublime e é uma despedida maiúscula de um dos maiores atores que já passou por Hollywood. Curiosamente, Day-Lewis revelou que não assistiu ao filme finalizado, devido à tristeza que se apossou dele durante as filmagens e que o levou a abandonar a carreira. E ele não deve estar exagerando, visto que Trama Fantasma é um passeio pesado na psique de um estilista prepotente e de uma mulher que vai até as últimas consequências para se mostrar útil ao homem que ama.
A fagulha para a trama se deu quando Paul Thomas Anderson, adoentado, se viu acamado, recebendo os cuidados de sua esposa, a atriz Maya Rudolph. Algo no olhar da mulher, uma ternura que há tempos ele não enxergava, o fez pensar em alguns pontos dessa Trama Fantasma. Daniel Day-Lewis estava a bordo da produção desde sua gênese, ajudando Anderson – de forma não creditada – com o roteiro, inclusive indicando o sugestivo nome do protagonista: Reynolds Woodcock. Como é do método, o ator passou meses estudando para o papel, chegando até a costurar algumas peças de roupa. Com sua colega de elenco Lesley Manville, que vive a sua irmã e braço direito Cyril, o ator passou seis meses em contato, a conhecendo, para conseguir a ligação que vemos no set. Já com sua outra parceira de cena, Vicky Krieps, que vive Alma, a mulher que tenta conquistar o coração e a atenção de Reynolds, o contato foi mínimo – e como Day-Lewis não sai do personagem, ela não chegou a conhecer a pessoa por trás daquele papel.
Londres, década de 1950. Reynolds Woodcock é um dos principais designers de moda da região, sendo o preferido de estrelas, da família real e de toda uma sorte de mulheres abonadas. Quem o ajuda a organizar tudo é sua irmã, Cyril, que não apenas toma conta de sua vida profissional, mas também se livra das namoradas e musas inspiradoras do irmão. Quando Reynolds se encanta com a garçonete Alma, ele a convida para se mudar para sua casa, onde servirá de modelo, amante e musa. Ela se encanta com aquele homem, mas mal sabe que conviver com o genial artista é dificílimo. Cheio de manias e de regras, Woodcock é insensível e não tem problema algum em ser arrogante e rude com a mulher que o ama. Alma aguenta o quanto pode, mas sua vontade de ser alguém importante na vida daquele artista fará com que ela tome uma atitude bastante condenável.
Por ser um filme de época, com uma atmosfera de suspense palpável, Trama Fantasma lembra, em pontos específicos, o único trabalho de Alfred Hitchcock a levar o Oscar de Melhor Filme: Rebecca, A Mulher Inesquecível (1940). Naquela produção, uma jovem mulher casa com um ricaço e passa a viver em sua mansão, onde é vigiada de perto pela taciturna governanta e pelo fantasma da falecida ex-mulher do marido. Neste caso, fantasma tem significado figurativo, visto que não temos um espectro, mas uma forte presença de Rebecca na casa através da memória das pessoas de lá. Em Trama Fantasma, alteramos a governanta pela irmã de Woodcock; trocamos a figura de Rebecca pelos vestidos e pela carreira do artista. No filme de Paul Thomas Anderson, Alma não precisa vencer a ideia de outra mulher. Ela precisa passar por cima da obsessão do estilista pelos trajes que cria, pelas regras que estabelece, pelos limites que inventa. Se não bastasse isso, Anderson capricha no clima claustrofóbico, algo que Hitchcock fazia como ninguém. Deixaremos aqui de lado o fato dos nomes dos protagonistas também remeterem ao Mestre do Suspense, visto que Alma era o nome da esposa do cineasta e Woodcock soa bastante similar a Hitchcock. Isso até pode ser coincidência.
Quem pensava que o show seria apenas de Daniel Day-Lewis por ele ser o nome mais conhecido do elenco, pode pensar de novo. Lesley Manville faz frente ao ator sendo uma verdadeira rocha. Sua personagem, Cyrill, é alguém que se mantém sempre com uma expressão severa em seu rosto, como se estivesse investigando meticulosamente seu interlocutor. Embora pareça bastante fechada, descobrimos que ela simpatiza com Alma – do jeito dela, obviamente, sem grandes momentos calorosos. Um sorriso de canto de boca é o suficiente para ela mostrar afeição. Manville foi lembrada pela Academia na categoria Melhor Atriz Coadjuvante no clássico caso da indicação que serve como prêmio. Habitué do BAFTA, já tendo sido lembrada em outras três ocasiões (Um Ano Mais, 2010; River, 2015-; Mum, 2016), Manville garantiu sua quarta indicação, mas perdeu para Allison Janney, de Eu, Tonya, algo que se repetiu no Oscar.
Quanto a Day-Lewis, o ator é um monstro. Utilizando seu sotaque britânico pela primeira vez em quase trinta anos, o intérprete do detestável Reynolds Woodcock ocupa toda a tela com sua performance. O texto sempre parece ser bolado na hora por ele, como se as palavras lhe viessem à mente, sem um roteirista as escrevendo anteriormente. Sua postura frente aos vestidos, estudando-os de maneira próxima, quase como um animal cercando sua vítima, é um toque visceral dado ao personagem. Woodcock é tão detestável e feito de forma tão comprometida pelo artista que acabamos o odiando nos momentos corretos. Se não compreendemos exatamente o que leva aquela mulher a se envolver com o estilista, ao final, somos tomados por uma surpresa, um twist que só poderia sair da cabeça de Paul Thomas Anderson.
Aliás, que diretor formidável. Em Trama Fantasma, Anderson não é exibicionista com sua câmera, não pede explosões de seus atores. Ele faz um filme que, por vezes, parece intimista, uma pequena produção britânica sem grandes ambições. Sabemos muito bem que não é o caso, mas o tamanho e o escopo do filme (que é americano, diga-se de passagem) não parecem influir no trabalho final de Anderson, que nos entrega um de seus personagens mais deliciosamente malvados – e aqui podemos citar não só Woodcock, mas Alma também. Vicky Krieps encarna uma versão mais apimentada de Joan Fontaine em Rebecca, mostrando que seu lado plácido pode muito bem se transformar e se virar contra seu opressor.
Quem adorou Sangue Negro (2007), pela construção de personagens, e O Mestre (2012), pelo andamento de sua narrativa, terá em Trama Fantasma um verdadeiro presente. Se deixe levar pela relação tóxica daqueles dois personagens e curta o show de interpretações que vemos em tela. Pode ser a última vez que acompanharemos um novo personagem de Daniel Day-Lewis, mas encerrar com um trabalho de Paul Thomas Anderson não poderia ter sido decisão melhor do ator.