Tuio Becker – algumas lembranças

por Hiron Goidanich

Foi amizade à primeira vista. Conheci o Tuio (1943 – 2008) lá na redação da Zero Hora, bem no início dos anos 1970. Naquela época, ele já trabalhava para o Grupo RBS, como programador de filmes no Canal 12.

Era um fim de tarde. Saímos do jornal a pé, rumo ao antigo Cinema Marrocos. Uma caminhada de mais de 20 minutos, que só teve um tema: o cinema. Uma paixão mútua, que nos manteve amigos por quase 40 anos, mesmo quando aconteciam algumas divergências de opinião. Só que o Tuio não era apenas espectador e crítico (em 1973, ele já era meu interino e ainda realizava notáveis matérias sobre diretores para as páginas de ZH dominical). Era a época de ouro da cobertura cinematográfica através dos jornais. Nada de apenas uma ou duas reportagens semanais (contando os lançamentos de sexta). Todos os dias, apresentávamos nossas opiniões e às vezes até escrevíamos sobre o cinema na TV.

O Tuio tinha uma vantagem sobre todos nós. Ele já tinha realizado filmes em super-8. E, com o correr dos anos, seria igualmente cenógrafo, roteirista, co-diretor e até ator (ele fez o filho malvado do fazendeiro em Negrinho do Pastoreio, de Antônio Fagundes, rodado em 1973).

Barcos e beijos
Quando trabalhamos juntos na MPM Propaganda (sem largarmos o jornalismo diário), filmamos lá dentro da agência dois curtas em super-8. O edifico da empresa ficava no alto do Morro Santa Tereza. A vista para o rio era maravilhosa. Me veio a idéia de filmar os navios que passavam lá embaixo, no Guaíba. O Tuio fez tudo: filmou, editou, descobriu uma música cantada por Jards Macalé, chamada Movimento de Barcos, que se tornou o título do curta. Ele teve a gentileza de me colocar nos créditos como co-diretor.

O mesmo aconteceu com Kisses, Baisers, Besos, Beijos. No intervalo depois do almoço, vários colegas (principalmente as mulheres) apresentaram-se frente à câmera e mandaram beijos para a gente. Naquela época, entusiasmado pelo resultado, cheguei a pensar em fazer cinema também. Foi fogo de palha, apesar do estímulo do Tuio.

A sua presença sempre animou a todos nós. Mesmo quando ele se encontrava em férias, distante do Brasil, a gente esperava pelo seu retorno logo. Ele sempre trazia um saco de novidades. E nunca faltaram presentes para uma outra paixão minha, os quadrinhos. Graças ao Tuio, tenho HQs de países “exóticos”.

Livro e festivais
Em 1986, quando ele lançou seu primeiro livro, Cinema Gaúcho – Uma Breve História (Editora Movimento), fui escolhido para escrever a orelha da obra. Apesar do escasso material de pesquisa, o Tuio conseguiu resumir a trajetória de nosso cinema com objetividade e talento. O livro tinha quatro partes (os longas, os curtas, o super-8 e os anos 1980) e um apêndice. Neste, ele falava de diretores de outros Estados que tinham filmado no Rio Grande do Sul. Também existia um capítulo chamado The Pampas & The Gauchos, uma visão do “olhar estrangeiro” sobre os personagens comuns da cultura do Rio Grande, da Argentina e do Uruguai.

Na orelha do livro, eu começava assim: “Tuio Becker não apenas escreve sobre cinema… Ele também gosta muito de ver cinema. No mínimo, 365 filmes ao ano. Não rejeita nada: super-8, 16mm, super-espetáculos hollywoodianos, o cinema do terceiro mundo. O Tuio foi uma das raras pessoas que já viu filmes (sem legendas) na Bulgária, na Romênia, na Tcheco-Eslováquia e até no Marrocos. Quase sempre tirava licença (ou pedia férias) para assistir às mostras internacionais de São Paulo ou de Montevidéu. E Gramado, naturalmente”.

Parávamos em hotéis de “meia estrela” e víamos, em dois dias, no mínimo oito filmes. Uma canseira que valia a pena e que durante muitos anos nos diferenciou dos críticos do resto do país.

Escritos de cinema
Tuio sempre trabalhou muito, não só para jornais, mas igualmente para revistas e até em livros coletivos. Foi ele um dos organizadores da Coleção Escritos de Cinema, da Secretaria Municipal de Cultura, hoje já com dez volumes. O primeiro livro da série, Cadernos de Cinema de P.F. Gastal (1996), foi fruto da pesquisa e organização de Tuio. Antes, ele tinha organizado a publicação de O Cinema no Rio Grande do Sul (Coleção Porto & Vírgula, 1995) e depois co-editou (com o Davide Quintans e eu) o livro dos 30 anos do Festival de Gramado.

Faltava apenas uma coisa: uma seleção de seus trabalhos, ao longo de quase quatro décadas de crítica cinematográfica. O livro, chamado Sublime Obsessão (2003), volume oito da Coleção Escritos de Cinema, teve seleção e organização de Marcus Mello (um dos diretores da excelente revista Teorema). A obra terminava com uma entrevista que ele concedeu em 1988 à revista Alto Falante, de Santa Cruz do Sul, sua cidade natal. Leia este trecho, no qual cita seus diretores prediletos: “Eu gosto muito do Robert Bresson, cineasta francês, que teve poucos filmes exibidos por aqui. Ele faz uns filmes muito secos, enxutos e despojados. Gosto do Eric Rohmer, que faz um tipo de cinema mais naturalista. E de Wim Wenders, que faz uns filmes de estrada. Acho muito bom porque a gente viaja junto com ele… Gosto, sobretudo, do Roberto Rossellini, que acho o nome mais importante que apareceu em termos de cinema. Foi o cara em que se baseou a Nouvelle Vague e o cinema intimista de Antonioni, que gosto muito também”.

Para terminar, um pouco de ironia inteligente que o Tuio sempre teve. Ela está resumida nestas poucas frases da introdução do livro Nas Primeiras Fileiras, seleção de crítica e outros escritos de cinema meus: “Acredito que o Goida nunca tenha pensado que escrever sobre filmes pudesse ser uma forma de entrar no cinema sem pagar entrada. Peter Bogdanovitch, antes de ser diretor de A Última Sessão de Cinema, afirmava que a entrada franca nas salas de exibição foi o único motivo que o levou a escrever sobre cinema. Neste ofício, sempre estive muito próximo da motivação de Bogdanovitch”.