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Publicado por em out 8, 2017 em Artigos |

Um é pouco, dois é demais

Por Roger Lerina, mediador do debate com a atriz Raquel Karro, realizado no Cine Bancários, em 5 de outubro de 2017, especial para o site da Accirs

Pendular, de Lucia Murat

Raquel Karro e Rodrigo Bolzan

Exibido no 67º Festival de Berlim, na mostra Panorama, de onde saiu com o Prêmio Fipresci – a crítica internacional destacou a “qualidade visual”, “força narrativa” e “originalidade dramática e estética” do filme –, Pendular foi exibido na competição oficial do 50º Festival de Brasília antes de entrar comercialmente em cartaz no Brasil. O segundo longa-metragem de ficção de Julia Murat mostra efetivamente um amadurecimento narrativo e estético da jovem realizadora. Depois de dirigir curtas de ficção e documentários e de participar como assistente em trabalhos de outros diretores – inclusive da mãe, Lúcia Murat –, Julia dirigiu Histórias que só existem quando lembradas (2011), longa que recebeu cerca de 40 prêmios internacionais. Apesar desse reconhecimento, essa primeira incursão no longa de ficção carecia de um ritmo dramático regular e se ressentia de uma certa ingenuidade e mesmo paternalismo na abordagem do tema – o filme ambienta-se numa comunidade quase fantasma no interior do Estado do Rio de Janeiro, cujos poucos e idosos habitantes têm sua vida pacata sacudida com a chegada de uma jovem fotógrafa. Pendular, ao contrário, mantém o tempo todo o fio narrativo sob tensão e leva para a tela uma teia de paixões e conflitos emocionais tão variada que nem o próprio filme consegue dar conta – para o bem e o para o mal.

Pendular começa com um casal colando uma fita laranja no chão de um enorme galpão industrial abandonado, que vai demarcar o espaço em duas partes iguais: à direita o ateliê de escultura dele, à esquerda o estúdio de dança dela. Entusiasmados com o novo local de trabalho – que também lhes servirá de moradia –, ambos parecem ignorar as implicações simbólicas profundas dessa linha: mais do que reservar a área pessoal, essa fronteira indicará uma cisão já latente entre a dupla e que se manifestará gradualmente de forma mais explícita no decorrer da história. Ainda que não siga estritamente o confinamento do huis clos, o filme desenrola-se quase todo nesse cenário onde arte, performance e intimidade se misturam. Os personagens – que não têm nomes – estão preparando novas obras: ela ensaia, a princípio solitária, a coreografia de um solo, ele cria grandes esculturas auxiliado por um time de assistentes. Aos poucos, os descompassos entre os dois – quanto a ambições profissionais, expectativas relativas ao futuro, desejos contraditórios e inconfessáveis – vão minando uma cumplicidade antes lastreada em sólido sentimento amoroso, admiração mútua e conexão sexual intensa. Paradoxalmente, quanto mais o limite traçado no piso vai se erguendo como um muro imaginário, menos distinta fica a separação entre projetos artísticos, fantasmas do passado e crise afetiva – tudo acaba se amalgamando em uma mesma experiência.

Um dos méritos do roteiro de Pendular – reescrito por Julia durante anos com o marido, Matias Mariani – é articular essa dissintonia crescente com as sutis e às vezes nem tão discretas assim, manifestações da imposição de poder do homem sobre a mulher, não apenas no microcosmo doméstico, mas também em outros aspectos da vida em geral. A questão da paternidade e da maternidade torna-se, por exemplo, um cavalo de batalha nessa disputa, que se desenrola na tela de maneira reticente e nem sempre verbalizada, ainda que contundente. Essa queda de braço surda também ecoa no próprio status das expressões às quais os artistas se dedicam: a despeito dos impasses criativos específicos que ambos enfrentarão, a bailarina está em uma situação profissional e financeira bem mais precária do que o escultor, cuja carreira mostra-se consolidada e institucionalmente respeitada – replicando o que, grosso modo, parece ser a realidade dos profissionais dessas duas artes no Brasil.

Para além do enredo e seu desenvolvimento – cuja marcha, faça-se o reparo, sofre por conta de algumas dispersões em seu andamento e lacunas de informação a respeito de aspectos passados e presentes do casal –, Pendular destaca-se pela inteligente articulação entre cinema, dança e artes visuais e pelo aproveitamento na tela das semelhanças e diferenças entre essas linguagens. Dois ideais conflitantes buscam uma precária harmonia em cena: cinético em essência, o balé persegue o equilíbrio no movimento; estática por princípio, a escultura acomoda forças e volumes a fim de encontrar uma beleza estável. As divergências e convergências entre esses vetores vertical e horizontal acabam ditando o compasso dos quatro atos em que Pendular é dividido: A chegada de Alice, O ímpeto, A ação e A contra-ação. Como não podia ser diferente, a produção atentou para a qualidade dos trabalhos artísticos que seriam atribuídos diante da câmera aos personagens vividos pelos atores Raquel Karro e Rodrigo Bolzan: ela dança coreografias desenvolvidas por Flavia Meireles, enquanto ele se relaciona com esculturas criadas por Elisa Bracher e Marina Kosowski.

Coerente com essa ideia de gangorra em equilíbrio temerário, Raquel Karro e Rodrigo Bolzan mostram um adequado entrosamento em cena, emprestando credibilidade a esse jovem casal em questionamento. As cenas de sexo em particular são de uma intimidade e uma crueza impressionantes, não deixando dúvidas quanto à intensidade do vínculo que une os dois. Privilegiando o ponto de vista feminino, Pendular abre espaço generoso para que Raquel apresente uma interpretação entregue e envolvente, tanto atuando quanto dançando – com direito a performance catártica quase ao final do filme, ao som do clássico pós-punk Love will tear us apart, canção da banda inglesa Joy Division.

Segundo Julia Murat, a ideia do longa nasceu sob a influência de The other: rest energy, célebre performance de 1980 de Marina Abramovic e seu então companheiro, Ulay, na qual o casal segurava um arco tensionado apenas pelo peso de seus próprios corpos, com uma flecha apontada para o coração da artista sérvia. Exercício de confiança e equilíbrio em que nenhuma das partes pode se soltar, a obra concentra em quatro minutos aspectos concernentes a todo casamento – como companheirismo, precariedade, instabilidade, dedicação, atenção, dúvida, entrega, medo. Em Pendular, a cineasta avança para além do paroxismo de Rest Energy, especulando que aquele instante equilibrado é por princípio fortuito. Seu filme conclui-se com uma bela e melancólica cena, reconciliando enfim cinema, dança e escultura – mas também afirmando amargamente que a assimetria de afetos e desejos pode resultar em um dilema numérico no qual um é pouco, dois é demais.