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Publicado por em mar 24, 2014 em Artigos |

Um filme de e sobre cinema (Crepúsculo dos Deuses, 1950)

por Arno Schuh Junior (aluno do curso de Tecnologia em Audiovisual da PUCRS)

3 Um plano sequência percorre as ruas, apenas para os créditos. Poderiamos pensar que este plano foi apenas concebido para a abertura do filme e suas chancelas, mas após estas últimas vemos que ele tem relevância a história. Carros policiais percorrem a Sunset Boulevard do título original com suas sirenes ligadas. Ocorreu um homício. Podemos definir isto só de ver o plano de Joe Gillis dentro da piscina, mas também ouvimos a narração do referido acontecido. Por conta disso é preciso notar como o filme foge do padrão naturalista tradicional. A estrutura se baseia numa narração irônica de um protagonista falecido e ao longo do filme e especialmente em seu final, a encenação, as atuações e ambientações são hiper-expressivas, tendo um olhar marcante sobre os excessos típicos de um cinema esquecido. Um cinema que não se pretendia naturalista. A própria construção de luzes sobre a figura da protagonista, Norma Desmond, tem em todos os momentos (ainda mais nos closes) uma força além do naturalismo, algo que nos remete a uma outra relação visual do cinema com os personagens estrelas. Um dado da produção para comprovar que a questão fotográfica do filme aponta para isso, e não apenas dos jogos de luz: os negativos originais eram compostos de nitrato, substância que já havia sido trocada pelo acetato nas películas de cinema décadas antes. Assim, é conferido ao filme tons de cinza que remete os espectadores a um cinema antigo, ainda da era muda.

Após a apresentação em narração, vamos para um flashback que vai se estender por praticamente todo o filme. Esse flashback praticamente é esquecido durante o decorrer da história. Torna-se relevante e instigante saber o que aconteceu com o personagem, mas não influi na trama, onde a narração se valoriza por criar esse suspense não declarado.

Pode-se definir o personagem de Joe Gillis como um alter-ego do diretor, que ao chegar em Hollywood também teve que sobreviver como roteirista. Logo nas primeiras cenas, quando Gillis tenta vender seu roteiro para um produtor, fica claro que o cinema deixou de se interessar por histórias e passou a se interessar por cifras. Em outro momento, Gillis diz que o público sequer sabe que existem roteiristas: “Eles acham que os atores improvisam tudo na hora”.

acaso é que toma conta da história, de solucionar o problema do personagem. O personagem estava quase desistindo da carreira, mas é surpreendido por esta chance de conseguir se estabelecer na vida. Nisso, acaba sendo submisso aos desejos de Norma. É interessante notar que Norma Desmond começa como uma doidivanas às voltas com o funeral de um chimpanzé, um possível e único elo de sentimento da personagem, mas que com a chegada de Gillis, ela acaba adquirindo outro animal de estimação, outro chimpanzé que aceita seus mimos e mandos.

O que torna mais interessante é saber que o personagem nota que está sendo comprado e aceita isso. Em um momento do filme ele sonha com uma linguagem metafórica do mesmo. “Nessa noite tive um sonho confuso. Nele havia um tocador de realejo. Não consegui ver a sua face, mas o realejo estava embrulhado em preto… e um chimpanzé dançava em troca de moedas. Quando abri os olhos, a música permanecia”. O roteiro brinca com o espectador, adianta o mote principal do filme que é alguém que sonha com o sucesso em Hollywood e que, além de ser esmagado pela máquina, é esmagado por si mesmo.

Na cena final, a trilha sonora cria um clima que mistura pessoa e personagem. Através das lentes das câmeras (que agora se confundem com as câmeras do próprio filme), Norma volta a ser a mulher com o poder da deusa. O filme talvez possa se definir todo na relação que estabelece com sua protagonista. A interpretação de Swanson é responsável por trazer à tona todo o impacto que o filme tem, por ser o cerne de todo o problema que o filme pretende criar com ares trágicos, essa oposição entre um mundo vivido e um mundo mítico e sonhado. Ela repete o credo que milhões de espectadores inconscientemente repetem ao entrar em uma sala de cinema, em qualquer lugar do mundo: “Nada importa: apenas nós, as câmeras e essas pessoas maravilhosas no escuro.” E se aproxima da câmera, saindo do foco, sendo esmaecida na imagem, apagando-se diante do espectador.

O filme consegue atingir de forma clara as bases de uma cultura cinematográfica calcada no ultra-realismo (sendo Wilder um mestre do estilo clássico). É difícil encontrarmos outros exemplos de tragédia semelhante, onde nos apresentem os próprios mitos abandonados, que revisitem os ídolos de uma fase dourada já na sua velhice evidentemente precoce e gagá. O filme age para que a visão grotesca ligue-se definitivamente ao mundo real – e precisa ser vistoem sala de cinema, pois, desde o seu ínicio, assume-se como filme de cinema.

Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard)
Direção: Billy Wilder
Roteiro: Charles Brackett, Billy Wilder e D.M. Marshman Jr.
Com: William Holden, Gloria Swanson, Erich von Stroheim, Nancy Olson, Fred Clark, Lloyd Gough, Jack Webb, Cecil B. DeMille, Hedda Hopper, Buster Keaton, Anna Q. Nilsson, H.B. Warner, Ray Evans, Jay Livingston
País de produção: EUA
Ano de lançamento: 1950
Disponível em DVD no Brasil
Duração: 110 minutos