Um homem dominado por suas obsessões (O Homem Urso, 2005)
por Cristian Verardi
O cineasta alemão Werner Herzog, seja na ficção ou no documentário, sempre utilizou sua câmera como uma arma para dissecar os conflitos internos de suas personagens. A ganância e o progressivo enlouquecimento de Klaus Kinski em Aguirre, A Cólera dos Deuses (1972), ou o processo que vai da total alienação do mundo ao desabrochar da consciência pelo qual passa Bruno S, em O Enigma de Kaspar Hauser (1974), são exemplos de seu cinema intimista e anárquico, que reflete tanto a construção como a diluição do indivíduo.
Em O Homem Urso, Herzog volta suas lentes de documentarista para a trágica história do ambientalista amador Timothy Treadwell, que passou 13 verões consecutivos em companhia de ursos pardos no Alasca, até ser, junto com sua companheira Amie Huguenard, pateticamente devorado por um deles. É compreensível o interesse de Herzog pela desastrada empreitada de Treadwell, que sintetizou em vida os paradoxos ficcionais do cineasta alemão.
Quando decidiu dedicar sua vida à proteção dos ursos pardos, Timothy Treadwell acabou abdicando de uma parcela de sua humanidade. Vítima de sua misantropia, ele idealizou em seu refúgio no Alasca um mundo perfeito, o qual considerava menos selvagem e cruel do que o dos humanos. Porém, ao envolver-se de forma tão passional com sua causa, Treadwell traçou o caminho de sua destruição quando ultrapassou os limites de sua própria natureza, e passou a também considerar-se… um urso!
Para tentar desvendar as motivações que levam um homem a renegar a civilização, para embarcar de corpo e alma em uma insana causa ecológica, além de entrevistas com amigos íntimos e especialistas ambientais, onde não faltam comentários que vão da paixão ao puro sarcasmo, Herzog utilizou trechos das mais de cem horas de gravações realizadas pelo próprio Treadwell.
As gravações, que eram utilizadas para educar principalmente as crianças sobre o perigo de extinção dos ursos pardos, revelam, não um destemido protetor da natureza, mas um homem com a mente fragmentada, incapaz de discernir entre a realidade e o mundo selvagem inocentemente idealizado por ele. As imagens retratam o amadorismo de suas ações, prevendo a inevitável tragédia, pois Treadwell lidava com ursos ferozes de quase três metros de altura como se fossem ursinhos de pelúcia; como conseqüência, em outubro de 2003, ele e sua namorada foram vorazmente devorados por um dos ursos que protegiam. Durante sua morte, a câmera, apesar de a lente estar encoberta, permaneceu ligada, e o áudio captou toda a sua agonia. Um dos momentos de maior impacto de O Homem Urso ocorre quando Herzog ouve o registro. O áudio real não chega aos ouvidos do público, e escutamos apenas a narração hesitante de Herzog, que em determinado momento silencia, e sua reação ao conteúdo da fita é o suficiente para traduzir todo o horror ali contido.
Por ter em mãos um material perigosamente ambíguo, que poderia render um festival de escatologia e sensacionalismo, o diretor optou por não expor graficamente o funesto resultado da empreitada, e centrou-se nos depoimentos, que rendem desde momentos de pura perplexidade até acessos involuntários de humor negro, gerados principalmente pela presença do insólito legista que cuidou do caso.
A controversa figura de Timothy Treadwell, independentemente do julgamento de seus atos, rendeu para Herzog mais do que um documentário sobre homens e ursos, ou sobre uma tragédia anunciada; o diretor concebeu uma dramática análise sobre a natureza, humana e animal, e organizou uma excursão por uma região mais selvagem e desconhecida que o gélido Alasca… a mente de um homem que se deixou dominar por suas obsessões.
Artigo publicado originalmente no site Insólita Máquina. Texto de crítico integrante da ACCIRS já publicado em outro veículo da imprensa e autorizado para publicação no site da associação.
O Homem Urso (Grizzly Man)
Direção: Werner Herzog
Documentário
País de produção: EUA
Ano de lançamento: 2005
Disponível em DVD no Brasil
Duração: 108 minutos