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Publicado por em jun 21, 2021 em Artigos, Críticas |

Um rasgo como justiça cinematográfica

por Renato Cabral

Em sua entrevista ao Roda Viva em junho de 2021, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie relatou que ao chegar ao Brasil e buscar a tão bem vendida diversidade, acabou surpreendida ao estar em um restaurante e notar algo muito diferente das suas expectativas. Adichi logo identificou que não havia nenhum negro brasileiro a frequentar o estabelecimento. Foi aí que ela percebeu que a diversidade bem vendida lá fora não era tão verdadeira assim quando chegou aqui. Ela concluiu que quando em um país com uma expressiva população negra não consegue colocar os seus cidadãos negros em posições de poder, algo de errado há. Para alguns pode ser que Chimamanda teve um desencontro, mas usar desta justificativa só serviria para suavizar mais uma metáfora importante que a escritora nos apresenta.

Não precisaríamos fazer uso das reflexões de Adichie para notar os abismos e segregações que foram construídos e se perpetuam de maneira velada há centenas de anos, elas são fendas visíveis em nossa sociedade. Porém são esses momentos de reflexão e esgarçamento que precisamos e a OHUN, edição comemorativa dos cinco anos da Mostra de Cinema Negro de Pelotas, realizada por estudantes negros e negras de uma universidade pública, se propõe em diversos temas tratando-os com a imensa relevância que pedem. E, no final das contas, muitos dos filmes que lá assistimos se tratam simplesmente sobre ascender ao poder.

Tudo que é apertado rasga (2019), do baiano Fabio Rodrigues Filho, é um belíssimo ensaio visual. A produção se propõe a analisar o audiovisual brasileiro e a presença negra nas telas através de alguns atores e atrizes. Mas mais que uma mera análise ele se dedica a dar voz, cara e reviver a história desses que tanto foram e podem continuar marginalizados em um sistema que os colocam em último plano. O ato justiceiro do diretor recorre a imagens de arquivo tiradas de programas de televisão, entrevistas realizadas por terceiros em uma edição que embarca nas imagens ao se apropriar e enquadrando de novas formas, ressignificando e apresentando com um trabalho adicional de direção de arte voltada aos letreiros que aparecem durante a exibição como papéis que se rasgam e se são invadidos.

Entre os atores e atrizes analisados estão os grandes nomes de Zezé Motta, Grande Otelo e Zózimo Bulbul. O trio reina nas observações de Rodrigues Filho ao serem utilizados como exemplos centrais. Mas lá encontramos também Ruth de Souza, Léa Garcia, Antônio Pitanga, Milton Gonçalves, Mário Gusmão e Lázaro Ramos, este representando a nova geração. É notável a presença de Zezé receber grande destaque, já que a atriz e cantora sempre comentou publicamente em entrevistas sobre as situações de marginalização da personagem negra na dramaturgia brasileira, os limites que lhe foram impostos e os caminhos que teve que trilhar para manter uma carreira artística e seu ganha-pão. Seu carisma e o imaginário do brasileiro com suas participações em grandes novelas é uma bela forma de fisgar o espectador.

No final das contas, o que as atrizes e os atores retratados na edição primorosa do olhar de Rodrigues Filho buscam destacar é que conter artistas negros grandiosos de ascender ao seu real poder e representatividade é como um ato criminoso. E, o esgarçar da tela junto da reedição das imagens para destacar essa história é um ato de, no mínimo, justiça cinematográfica.