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Publicado por em nov 23, 2024 em Críticas, Destaque |

V Festival Cinema Negro em Ação :: “Um É Pouco, Dois É Bom” (1970), por Alisson Santos

O filme gaúcho esquecido por décadas


É impossível começar a falar sobre a história de Um É Pouco, Dois É Bom sem citar seu grande criador, um gaúcho de coração com uma vida e carreira louvável, tanto que o prêmio do Festival Cinema Negro em Ação leva seu nome: Troféu Odilon Lopez.    

Odilon (1941-2002) foi jornalista, cineasta, roteirista e ator. Chegou em Porto Alegre em 1959, de onde não saiu mais, tornando-se repórter cinematográfico, profissão que sequer existia na produção televisiva até então. Foi o primeiro jornalista negro a ter um programa na televisão do Rio Grande do Sul, na TV Piratini, em 1979.

Em paralelo ao seu trabalho como jornalista, Odilon fundou, em 1969, a produtora Super Filmes, onde nasceu Um É Pouco, Dois É Bom (1970).

O filme ficou esquecido por muitos anos devido a fatores como a falta de reconhecimento e apoio para cineastas negros, além das dificuldades de distribuição e preservação de filmes no Brasil. 

Por muito tempo parte dos rolos de negativos da produção estavam guardados na garagem da casa de Vanessa Lopez, filha de Odilon, até que a Cinemateca Capitólio em parceria com outras instituições realizaram uma restauração completa em 4K. E somente agora, 54 anos depois da realização, começamos a ver o filme sendo exibido para o público.

Um É Pouco, Dois É Bom é separado em dois contos: “Com Um Pouquinho… de Sorte” e “Vida Nova…Por Acaso”. Ele foi um dos primeiros filmes a captar imagens urbanas do centro de Porto Alegre, tendo filmagens na Praça XV, Estação Rodoviária e no estádio Beira-Rio.

No primeiro conto acompanhamos a história de Jorge e Maria, casal interpretado por Carlos Carvalho e Araci Esteves. Recém casados, eles compram um apartamento financiado em um bairro popular. 

Após uma série de acontecimentos, vemos a vida do casal desmoronar, ambos desempregados e com medo do amanhã, um retrato perfeito do que vive parte da sociedade brasileira até hoje. É possível sentir o frio na barriga de ambos os protagonistas com a atmosfera criada no filme.

O segundo conto é mais movimentado e de humor ácido, protagonizado pelo próprio Odilon Lopez vivendo o personagem Crioulo. E seu parceiro Magrão, interpretado por Francisco Silva.

Os dois são ladrões de bolsa que intercalam sua vida entre morar na rua e no Presídio Central de Porto Alegre, até que uma vida nova por acaso se oferece para Crioulo e ele não quer deixar essa oportunidade passar.

Odilon convidou o escritor Luis Fernando Veríssimo, até então ainda em início de carreira, para escrever os diálogos do filme. Uma parceria que se mostrou excelente, pois até as piadas do filme são de um tom inteligente e agregam na narrativa da produção.

Em ambas as histórias, por mais que com abordagem diferente, vemos o pessimismo da classe média baixa da época, e acabamos mergulhados no delírio e até psicodelia no final de cada ato, formato que causa dois clímax no filme, mantendo a atenção do espectador na produção.

Não concordo com a crítica comparando Um É Pouco, Dois É Bom com o filme contemporâneo norte-americano Corra! (2017) de Jordan Peele, inclusive acho que traz uma publicidade inversa a mensagem que Odilon Lopez quis passar.

Em minha visão, senti inspiração de Odilon em filmes de folk horror nos anos 50 e 60, e na obra de Frantz Fanon, filósofo de grande influência nos anos 60, onde abordava questões como o colonialismo e alienação. E como sua filha Vanessa disse na exibição, o filme tem um olhar jornalístico a respeito da sociedade da época, mostrando a classe trabalhadora e problemas financeiros.

Equilibrando drama e humor, Um É Pouco, Dois É Bom é uma memória do cinema gaúcho que ficou por muito tempo desconhecida de grande parte da nossa sociedade, e merece agora por sua qualidade de produção ser amplamente divulgada e vista pelos apreciadores de cinema.


Texto publicado originalmente em Cine News POA.
Este texto integra uma ação da ACCIRS em parceria com o V Festival Cinema Negro em Ação, promovido pelo Iecine RS, em uma nova categoria criada no evento: o prêmio para Crítica Revelação, voltado aos textos de alunos dos cursos de audiovisual e/ou comunicação de universidades gaúchas.

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