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Publicado por em maio 9, 2023 em Artigos |

XIX Fantaspoa :: Os cinco melhores, por Ticiano Osório

5º. O Tio (2022), de David Kapac e Andrija Mardesic

É como se fosse uma cruza de Feitiço do Tempo (1993), aquela comédia em que Bill Murray é condenado a reviver o mesmo dia indefinidamente, com os perturbadores filmes de Michael Haneke. Aparentemente, estamos no final da década de 1980, quando a Croácia ainda integrava a Iugoslávia, país que se dissolveu em várias repúblicas a partir do início dos anos 1990. Acompanhamos uma família – o pai (Goran Bogdan), a mãe (Ivana Roscic) e o filho (Roko Sikavica) – nos preparativos para um jantar de Natal, no qual terão como convidado o tio (Predrag “Miki” Manojlovic, assombroso) vindo da Alemanha.
O que começa em um tom de humor esquisito e incômodo (o tio trata o sobrinho, que já tem seus 20 e tantos anos, como um adolescente imberbe e, lascivamente, compara a mulher da casa com Sophia Loren) vai ganhando contornos mais sinistros à medida que essa situação se repete, dia após dia. Mas por que essa situação se repete? O que explica alguns anacronismos? Quais são as reais intenções de todos os personagens? O Tio é um dos filmes mais envolventes e intrigantes do ano. Mereceu receber o prêmio de melhor roteiro na mostra internacional do Fantaspoa.

4º. Terceira Guerra Mundial (2022), de Houman Seyyedi

Foi o selecionado para o Oscar internacional pelo Irã, que vem sendo muito bem representado no Fantaspoa: em 2020, tivemos Uma História Cabeluda; em 2021, O Grande Salto; e no ano passado, Matando o Eunuco Khan. Também ganhou dois prêmios na mostra Horizonte do Festival de Veneza: melhor filme e melhor ator (Mohsen Tanabandeh, também laureado na mostra internacional do Fantaspoa).
Shakib, um sem-teto de meia-idade que mantém uma espécie de relacionamento com uma prostituta surda e muda (Mahsa Hejazi), vira operário em um canteiro de obras que vai se transformar no cenário de um filme sobre as atrocidades da Segunda Guerra Mundial. Por incidentes fortuitos e por cair na simpatia do diretor, ele acaba escalado para substituir o ator que faria o papel de Adolf Hitler. Com essas tintas, Terceira Guerra Mundial faz um retrato das relações de poder, misturando as cores do absurdo e do abuso, e uma analogia dos campos de concentração nazistas, fazendo jus à epígrafe dos créditos de abertura: “A História não se repete, mas costuma rimar”, uma frase atribuída ao escritor estadunidense Mark Twain. O roteiro é uma peça de ourivesaria: até os pequenos detalhes, supostamente desimportantes, vão ter um peso tremendo.

3º. As Bestas (2022), de Rodrigo Sorogoyen

Antoine (Denis Ménochet) e Olga (Marina Foïs) são um casal francês que vive em uma aldeia no interior da Galícia. Lá, eles levam uma vida tranquila, cultivam vegetais e reabilitam casas abandonadas, embora sua convivência com os moradores locais não seja tão amistosa quanto desejam. Sua recusa em concordar com a implementação de um parque eólico acentuará os desentendimentos com os vizinhos, especialmente com os irmãos Xan (Luis Zahera) e Loren (Diego Anido).
Desde a cena de abertura, ao mesmo tempo selvagem e poética, em que homens se atiram sobre cavalos bravios para tentar domá-los, As Bestas justifica a vitória arrasadora no Goya, o prêmio da Academia Espanhola. Foram nove troféus: melhor filme, direção, ator (Ménochet), ator coadjuvante (Zahera, cru e assustador), roteiro original, fotografia, edição, som e música (que aparece sucintamente, mas é fundamental na construção da atmosfera). Sorogoyen retrata como podem ser tensas as relações humanas, sobretudo quando temperadas pela xenofobia e por visões de mundo muito diferentes: para Xan e Loren, vender as terras é a chance de escapar da miséria e do “cheiro de merda”; para Antoine e Olga, que vieram da cidade, a simplicidade da vida rural foi uma escolha.

2º. A Mesa da Sala de Jantar (2022), de Caye Casas

Começa como uma comédia engraçadíssima: Jesus (David Pareja, melhor ator na mostra ibero-americana do Fantaspoa) e María (Estefania de los Santos), pais do recém-nascido Cayetano, estão em uma loja de móveis, onde um vendedor picareta tenta convencer o casal de comprar “la mesita del comedor” do título original, a mesinha de centro Röret, uma peça de “design sueco, pintada em bronze, com vidro inquebrável, sobre uma estrutura com a imagem de duas belas garotas, feitas em marfim e banhadas numa perfeita imitação de ouro”. O marido quer levar, a esposa não, mas como ela já escolheu as cores do apartamento, o dia do casamento, o terno que ele vai usar, o vestido da sogra, a hora de ter um filho e o nome do guri – “Um nome ruim, de toureiro fascista!” -, Jesus pode curtir uma rara e pequena vitória no dia em que vão receber a visita de seu irmão, Carlos, e de sua namorada de 18 anos, Cris.
E mais não dá para dizer sobre este filme espanhol que, como de costume no Fantaspoa, nos pega de surpresa (não à toa, ganhou o troféu de melhor roteiro na competição ibero-americana), oferecendo uma trama absolutamente incomum e nos colocando em uma situação absurdamente aflitiva, na qual um dos personagens sabe de algo que os outros desconhecem. Prepare-se para suar frio, quem sabe até ficar nauseado, mas não deixe de ver quando estrear oficialmente. Este é do tipo um em um milhão.

1º. Soft & Quiet (2022), de Beth de Araújo

Filha de um brasileiro com uma chinesa-estadunidense, a diretora e roteirista acompanha em tempo real – ou seja, como se tudo tivesse sido filmado em um único plano-sequência – a primeira reunião de um grupo de mulheres neonazistas. Entre elas, está a professora de educação infantil Emily, protagonista da trama.
Merecidamente ganhadora do prêmio de melhor direção na competição internacional do Fantaspoa (tem absoluto controle do caos), Beth de Araújo ilustra como, na casa do vizinho ou na porta ao lado, os ideais neonazistas germinam e se alastram, tendo entre os fertilizantes o ressentimento e a ignorância. Soft & Quiet também mostra como a teoria vira prática, como uma suposta “brincadeira” pode descambar para algo muito sério. Basta uma fagulha para provocar um incêndio – e aí a masculinidade tóxica surge como outro combustível: é por meio dela que Emily induz o marido a participar de uma ação que vai de mal a pior, tornando-se cada vez mais aflitiva e asfixiante, a ponto de só conseguirmos respirar no último instante do filme